COVID-19: Proteger as(os) trabalhadoras(es) mais vulneráveis

Em Cuiabá, migrantes recebem capacitação profissional para ingressar no mercado formal de trabalho

Para quem busca recomeçar a vida no Brasil, projeto da OIT, do MPT e do CPM oferece de aulas de português a cursos profissionalizantes, agora adaptadas para a modalidade virtual por causa da pandemia

Notícias | 28 de Setembro de 2020
Projeto de combate ao trabalho escravo atende trabalhadores e trabalhadoras migrantes, resgatados e vulneráveis no Mato Grosso
Brasília - A cubana Yaricel Graveran foi embora de seu país numa manhã de domingo, a venezuelana Ehidriliz Batista deixou sua cidade natal num dia de fevereiro e sua compatriota Carmen Ramirez partiu sem conseguir se despedir da mãe. Para trás, elas deixaram histórias e planos interrompidos. À frente, encontraram recomeços e incertezas no Brasil.

Yaricel, Ehidriliz e Carmen são algumas das milhares de pessoas que migraram ou procuraram refúgio no país nos últimos anos. Muitas delas tentam construir uma vida nova em Cuiabá, capital de Mato Grosso, onde buscam ajuda no Centro de Pastoral para Migrantes (CPM). Há mais de 30 anos, o CPM trabalha no acolhimento emergencial e na defesa dos direitos humanos da população migrante.

Yaricel Graveran, migrante cubana.
“Se tem uma coisa que não me arrependo na minha vida foi ter vindo para o Brasil. Apesar das necessidades que passei aqui, eu sou muito agradecida a Deus, pois conheci muitas pessoas que me ajudaram muito, agora tenho um bebê, consegui trabalho e uma casa.“, disse Yaricel, que vive há três anos no país.

Vivendo em Cuiabá com os três filhos pequenos, Ehidriliz Batista planejava ir para o Uruguai, onde tem família, mas mudou de ideia. “Me disseram que Brasil é um dos países que está ajudando mais os venezuelanos. E isso mudou minha decisão de seguir para o Uruguai”.

Seja migrando através de fronteiras internacionais ou dentro do país, trabalhadores migrantes fazem parte dos grupos populacionais mais vulneráveis ao risco de aliciamento para trabalho em condições análogas à escravidão. O Artigo 149 do Código Penal brasileiro define trabalho análogo à escravidão como: “reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto.”

Atento ao problema, em 2019, o Ministério Público do Trabalho (MPT) em Mato Grosso, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) e o CPM uniram-se no projeto de combate ao trabalho escravo no estado. O propósito é diminuir a vulnerabilidade, assegurar os direitos básicos e promover a empregabilidade de trabalhadores e das trabalhadoras migrantes, resgatados e vulneráveis em Mato Grosso, por meio de ações integradas que protegem essa população do risco de aliciamento para condições de trabalho escravo e de outras formas de exploração.

Um risco que só tende a aumentar em tempos de crise causada pela pandemia da COVID-19.

Migrantes, trabalho escravo e pandemia

Antes da pandemia dados globais da OIT já mostravam que mais de 40 milhões de pessoas foram vítimas de formas de escravidão moderna em 2016.  No Brasil, mais de 50 mil trabalhadores foram resgatados em situação de trabalho escravo entre 2003 e 2018, de acordo com o Observatório Digital para a Erradicação do Trabalho Escravo e do Tráfico de Pessoas. Mato Grosso é um estado estratégico para o combate ao trabalho escravo. Ainda segundo o Observatório, Mato Grosso é o segundo estado com o maior número de trabalhadores resgatados em situação de trabalho escravo entre 2003 e 2018, com 4.394 pessoas.

O Mato Grosso é um dos destinos de trabalhadores e trabalhadoras migrantes.
Desse total, apenas 40% (1.802) são residentes do estado. Os números ajudam a ilustrar que Mato Grosso é um destino para trabalhadores e trabalhadoras que migram de outros pontos do Brasil ou de outros países em busca de melhores condições de vida.

Agora, uma característica da atual crise econômica e laboral decorrente da pandemia é a velocidade do impacto, que se traduziu em um colapso imediato da renda do trabalho e das famílias de um grupo muito amplo da população. Segundo a OIT, os efeitos da crise não serão distribuídos igualmente e impactarão mais profundamente as pessoas e as famílias que já se encontravam em situação de vulnerabilidade socioeconômica. Isso inclui pessoas com empregos menos protegidos e com baixos salários, assim como migrantes. Muitos trabalhadores e trabalhadoras migrantes e refugiados estão empregados em condições de informalidade, com baixa remuneração, ou em empregos sem proteção social.

Adaptação em tempos de COVID-19

Devido às medidas de distanciamento social, de restrição à circulação de pessoas e de suspensão de serviços adotadas para conter a disseminação do coronavírus, o projeto no Mato Grosso adotou também procedimentos emergenciais para seguir o atendimento a migrantes em meio à pandemia.

“Passamos a fazer atendimentos online, pelo telefone ou por grupos criado em um aplicativo de trocas de mensagens para auxiliar na emissão de documentos e para fornecer informações sobre acesso a serviços públicos. Fazemos o agendamento para que os migrantes possam buscar seus documentos e evitar aglomerações. Criamos também uma cartilha informativa para a população migrante”, disse Eliana Aparecida Vitaliano, coordenadora do CPM.

A distribuição de cestas básicas busca assegurar a segurança alimentar e nutricional dos migrantes e de suas famílias.

Outra ação foi assegurar a segurança alimentar e nutricional de trabalhadores resgatados, migrantes e suas famílias por meio da distribuição de 312 cestas básicas.

“Em momentos de crise econômica como a que vivemos, sabemos que a população mais vulnerável, como os trabalhadores resgatados e migrantes, fica ainda mais exposta ao risco de ser aliciada para formas de trabalho análogas à escravidão. Assim como muitos brasileiros, essas pessoas estão preocupadas com o bem-estar de suas famílias, o futuro de seus filhos e com o dia de amanhã. Por isso, é preciso assegurar os seus direitos e a sua segurança plenamente”, disse Tathiane Menezes do Nascimento, procuradora do MPT de Mato Grosso.

Rede sustentável de trabalho decente

O projeto de combate ao trabalho escravo no estado estabelece uma sequência de ações integradas e complementares para levar o trabalhador resgatado, migrante e suas famílias da vulnerabilidade ao aliciamento para o trabalho escravo - e da consequente exclusão socioeconômica - ao empoderamento como cidadãos cientes de direitos, à inserção social e cultural e à inclusão no mercado de trabalho decente.

O primeiro passo é atender e encaminhar os trabalhadores resgatados, migrantes e suas famílias para o acesso a políticas públicas e a assistência social, de forma que possam solicitar a emissão de documentos como carteira de trabalho, CPF e Registro Nacional de Estrangeiros (RNE), além de ter serviços de educação e saúde e a benefícios do governo federal, como o Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda (BEm). Desde o início do projeto mais de três mil pessoas já foram atendidas.

Carmen Ramirez, migrante venezuelana.
A inserção social, cultural e ao idioma dos migrantes é promovida por meio de cursos de português básico ministrado por professores voluntários, além de palestras sobre aspectos culturais do Brasil. Para garantir a capacitação contínua apesar da pandemia, o curso precisou inovar e adaptar. A sala de aula passou a ser em dois grupos criados em um aplicativo de troca de mensagens. Nas aulas semanais virtuais, os professores compartilham vídeos e passam exercícios para a turma de 60 pessoas. Os alunos fazem as tarefas, tiram dúvidas e enviam fotos para comprovar que fizeram os deveres.

“Eu quis fazer o curso de português, porque acho que se eu aprender a falar melhor a língua, minha vida no Brasil vai ser melhor, posso entender melhor as coisas. Eu não sabia de muitas coisas, agora entendo com facilidade ”, disse Carmen Ramirez, de 23 anos e que está há pouco mais de um ano no Brasil.

Estudar também estava nos planos do haitiano Milius Milfort quando chegou em Mato Grosso, em 2017.

Milius Milfort, migrante haitiano.
"Eu pensei: eu vou estudar, vou trabalhar e vou fazer faculdade. Hoje eu posso falar em voz alta que estou conseguindo o meu sonho.", disse ele, que tem uma bolsa de estudo para o curso de Processo Gerencial, na Faculdade Católica de Mato Grosso (FACC- MT)

O projeto também informa os migrantes sobre direitos sociais e trabalhistas brasileiros.

“Como os aspectos culturais e trabalhistas no Brasil podem ser diferentes daqueles do país de origem do migrante, a qualificação e o acesso do trabalhador migrante ao mercado de trabalho formal requer não somente conhecimentos da cultura e do idioma brasileiros, mas também conhecimentos sobre direitos sociais, trabalhistas e sobre o acesso às políticas públicas do país para que eles possam se adaptar mais facilmente”, disse Laura Díaz, oficial de projeto em Políticas Públicas, do Escritório da OIT no Brasil.

A etapa seguinte é preparar os migrantes para a busca de trabalho decente por meio da qualificação profissional. Instituições de ensino, como o Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac), oferecem cursos profissionalizantes de garçom/garçonete e de assistente de serviços gerais voltados para o mercado de trabalho local. Por causa da pandemia e para não interromper a capacitação profissional, esses cursos práticos foram adaptados para que os alunos aprendessem de forma remota, usando um celular.

Migrantes recebem orientações sobre acesso a políticas públicas e a assistência social.
“É sempre um prazer poder atender os mais necessitados e que buscam se profissionalizar, pois como o mercado está cada vez mais competitivo, um aluno preparado pelo Senac sairá na frente, sempre. Receber alunos de outros países em nossas salas de aula, e ajudá-los no processo de formação profissional é nada mais que uma troca de culturas e experiências, que somadas tornarão ambos mais fortes, tanto o aluno quanto a instituição. Transformar por meio da educação profissional é o nosso propósito”, disse Eliana Salomão, diretora Regional do Senac em Mato Grosso, .

Paralelamente, o projeto busca criar uma rede sustentável de empregabilidade. Para isso, é feito um mapeamento da oferta e da demanda de emprego, o que cria um banco de vagas de trabalho.

“É importante esclarecer para as empresas que os migrantes são regidos pelas mesmas leis trabalhistas que os demais trabalhadores brasileiros. É necessário desmistificar a ideia de que existe uma dificuldade na contratação dos migrantes, pois a partir do momento em que o trabalhador migrante consegue seu CPF, ele já pode tirar sua carteira de trabalho, que agora é digital e pode ser feita pelo site do Ministério da Economia, e ser contratado”, disse Marilete Mulinari Girardi, auditora fiscal do Ministério da Economia. 

Por fim, para verificar a adaptação e as condições de trabalho do migrante contratado é feito um monitoramento periódico.

“As políticas públicas devem garantir o acesso e a inserção de pessoas resgatadas do trabalho análogo ao escravo e de migrantes ao trabalho decente. A OIT está empenhada em trabalhar com governos, empregadores, organizações de trabalhadores e com outros parceiros para garantir um futuro positivo para todas as pessoas e para os trabalhadores migrantes e suas famílias. Assim, eles poderão usar suas habilidades e talentos para ajudar a reconstruir um normal melhor no pós-pandemia com inclusão e trabalho decente”, disse Maria Cláudia Falcão, coordenadora do Programa de Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho, do Escritório da OIT no Brasil.


(*) Com informações de Lorena Sanchez Gonzales, Assessora especializada em público vulnerável do CPM.