Entrevista: Thiago Gurjão, Procurador do Trabalho

Em seis anos à frente do combate ao trabalho escravo no MPT em Mato Grosso, Gurjão acompanhou de perto o apoio e a formação oferecida pelo projeto Ação Integrada, com apoio da OIT.

Notícias | 20 de Fevereiro de 2017
O procurador do trabalho Thiago Gurjão (Foto: MPT).
Após ingressar no Ministério Público do Trabalho em Mato Grosso (MPT/MT), no final de 2010, o procurador do trabalho Thiago Gurjão assumiu a coordenação regional da Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (CONAETE) e passou a trabalhar pelo fortalecimento do Ação Integrada, projeto que já atendeu mais de 700 pessoas desde 2009 e é referência no combate ao trabalho escravo no Brasil. Resultado da articulação do MPT/MT com a Superintendência Regional do Trabalho e Emprego de Mato Grosso (SRTE/MT) e a Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), a iniciativa conta com o apoio técnico e institucional da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

Um dos momentos mais impactantes da trajetória do procurador no Mato Grosso foi o encontro com dois trabalhadores que viviam em situação análoga à escravidão e foram presos por porte ilegal de arma e suposto crime ambiental, apesar de sua situação de extrema degradância e submissão ao explorador. Um outro episódio marcante, desta vez mais positivo, foi a homenagem ao defensor dos direitos humanos Dom Pedro Casaldáliga, na comemoração dos 20 anos da Procuradoria Regional do Trabalho da 23ª Região. 

Gurjão recentemente passou a atuar pela Procuradoria do Trabalho no Município de Nova Iguaçu, no Rio de Janeiro, seu estado natal. Na entrevista a seguir, ele conta detalhes de sua importante experiência no combate ao trabalho forçado no Mato Grosso:

Durante o período no MPT de Mato Grosso, quais foram os casos desafiantes que marcaram a sua trajetória?

Foram muitos. Para citar um evento que foi bastante emblemático e inédito, se tornando um marco, lembro das associações de empregadores que promoveram uma campanha midiática bastante intensa e frequente na internet, jornais e televisão do Mato Grosso, defendendo que o direito de greve prejudicava a sociedade. Isso era absurdo, porque a greve é um direito fundamental, responsável por conquistas históricas, como a jornada de oito horas e os direitos das mulheres ao trabalho e à igualdade.

Diante disso, recebemos representações das categorias profissionais e dos sindicatos dos trabalhadores. O MPT entrou com uma ação civil pública para retirar a campanha do ar e conseguiu uma liminar favorável. Após reuniões e audiências, houve um acordo com as associações responsáveis pela campanha e elas pagaram pela produção e veiculação de uma campanha com mensagem no sentido oposto [em julho de 2012], ou seja, que anunciava para a sociedade a importância histórica do direito de greve e de como ele foi responsável por uma série de conquistas no mundo trabalho. A produção da campanha foi acompanhada e aprovada pelo MPT/MT.

Na representação do Mato Grosso na CONAETE, o senhor recorda também de momentos de atuação relevante no combate ao trabalho escravo?


A atividade na região é muito complexa, pois há uma dimensão de promoção de direitos e políticas públicas e outra de atuação direta e supletiva destas políticas, a partir da prevenção e da assistência. Esta última é realizada por meio do Ação Integrada, em parceria com diversas instituições. Na atuação da CONAETE no combate ao trabalho escravo, cada um dos casos é sempre marcante. Quando você chega a um local e vê trabalhadores em situações degradantes, em condições inaceitáveis para a vida humana, é sempre chocante e impressiona.

Posso mencionar o caso de uma ação policial para fiscalizar um suposto crime ambiental [em maio de 2016, no município de São José do Rio Claro]. Ao chegar no local, os policiais encontraram somente os trabalhadores, alojados em barracas. Apesar de terem sido reconhecidos como vítimas de condições análogas à escravidão pela entidade policial, os trabalhadores foram presos pelo crime ambiental, que evidentemente é de responsabilidade do encarregado pelo empreendimento. Eles tinham algumas armas para se defender, pois estavam no meio do mato.

A situação era complicada e, quando a Procuradoria do Trabalho e outras instituições tomaram conhecimento, houve uma articulação e uma visita ao município para verificar os acontecimentos. Os trabalhadores, que saíram da situação de escravidão, tinham ficado presos por alguns dias. Eram dois senhores de 59 e de 60 anos, que depois de soltos estavam sob a tutela do advogado da empregadora que os explorava. Ou seja, continuavam em uma situação de restrição da liberdade de locomoção.

A situação era inerente às formas de escravidão. Primeiro devido à exploração do trabalho escravo, depois com a prisão realizada pela autoridade policial e, finalmente, com o advogado da mesma empregadora que os explorava e que disse que eles não poderiam sair do município. Eles estavam em uma situação de plena sujeição moral e nós conversamos com os dois para expor os seus direitos e desconstruir aquilo.
A SRTE teve uma atuação brilhante, que nós apoiamos e que sustentaremos juridicamente em caso de controvérsia. Os trabalhadores continuavam em uma situação restritiva da liberdade e da dignidade e, ao constatar que eles estavam sob tutela do advogado sem poder sair do local, a SRTE os resgatou.

Foi impactante ouvir de um deles que, depois de passar por tanta coisa na vida, o pior foi o momento em que rasparam o seu cabelo na prisão. Estes são contatos que vão marcando como um exemplo do tipo de tratamento que alguns trabalhadores ainda recebem no Brasil.

Quais as experiências que o senhor leva do Mato Grosso para o Rio de Janeiro?

Nesses seis anos no Mato Grosso, conheci diversas situações e realidades muito complexas. Foi um grande aprendizado, por exemplo, realizar um ato para comemorar os 20 anos da criação da Procuradoria Regional do Trabalho da 23ª Região. Em vez de um coquetel solene, como muitas vezes acontece, decidimos realizar um ato em São Félix do Araguaia em homenagem a Dom Pedro Casaldáliga. Nós fizemos no Anfiteatro da Prelazia de São Félix e o ato era para lembrar os 20 anos da instituição que surgiu para defender a dignidade humana dos trabalhadores de Mato Grosso. Essa defesa começou nos anos de 1970 com a atuação de Casaldáliga. Realizar esta homenagem foi uma alegria para o MPT e para os colegas.

Quais são os fatores que levam ao trabalho escravo e quais são as especificidades desta prática nociva no estado do Mato Grosso?

O fator principal se relaciona a diminuir os custos da atividade econômica, por meio da exploração do trabalho. Assim, [alguns empregadores e exploradores] não tratam o trabalhador como pessoa, mas como coisa e como instrumento da produção, buscando obter uma vantagem competitiva e um lucro maior na sua sociedade econômica.

Claro que há uma gama de fatores que se relacionam com este fator predominante, como a falta de acesso a meios de vida digna em algumas comunidades. Alguns trabalhadores e suas famílias foram expulsos da terra onde vivem. Pequenas produções foram empurradas por grandes produções. Com isso, as pessoas não têm acesso a meios de vida digna, oportunidades de trabalho, educação e recursos públicos básicos.

É importante frisar que, além destes exploradores diretos, existe aquele que compra a carne ou o eucalipto daquele fornecedor, negligenciando que aquele preço reduzido só pode ocorrer em uma produção que não respeita os mínimos trâmites legais.

No caso do Mato Grosso, o trabalho escravo rural é predominante, ao contrário de outros estados onde o trabalho escravo urbano passou a ganhar importância. Em âmbito rural, há atividades econômicas diversas, sendo a exploração muito comum na pecuária e em algumas atividades específicas da agricultura. Mas também há uma recorrência grande em determinadas etapas de produção e nos ciclos iniciais desta. Isto é, nas fases mais precárias da produção, quando são realizadas contratações que colocam os trabalhadores em situações absolutamente degradantes.

Como a população pode contribuir para transformar esta realidade?

A população pode e deve exercer o seu direito de cidadania sobre qualquer questão relativa aos direitos humanos. As conquistas sociais inerentes ao patamar civilizatório que alcançamos não são fruto de nada mais senão da mobilização das pessoas na busca deste horizonte de dignidade. Por exemplo, temos visto tentativas de mudança da condição legal do trabalhador sobre vários aspectos, como em relação ao conceito de trabalho escravo , em um esforço de dizer que tratar pessoas como bicho e como coisa não é trabalho escravo. Somente a conscientização e a mobilização sobre a gravidade da questão possibilitam evitar que um retrocesso como este aconteça.

O senhor considera o Ação Integrada, que surgiu no Mato Grosso e se ampliou para outros estados do Brasil, uma iniciativa inovadora no combate à escravidão contemporânea?


O Ação Integrada é uma iniciativa muito pioneira, que oferece assistência às vítimas do trabalho escravo e às pessoas da mesma rede social (familiar ou de contexto), que também estariam propensas a serem aliciadas para o trabalho escravo. A atuação é realizada a partir da oferta de formação profissional e de outras oportunidades para os trabalhadores. Todas as despesas do projeto, com exceção daquelas que passaram a contar com o apoio da OIT, são custeadas com os recursos de multas e indenizações de danos à coletividade obtidas pelo MPT em sua atuação. É inovador porque oferece a possibilidade de compensação de danos causados por empregadores, que violam a lei com a exploração do trabalho escravo, a partir de benefícios para o próprio universo do trabalho. Esta dinâmica é muito inovadora e serve de referência para outras iniciativas que hoje tentam reproduzir a proposta, oferecendo também alternativas às vítimas de trabalho escravo.

Como a aprovação do Marco Legal do Combate ao Tráfico de Pessoas, referente à lei 13.344, colabora para a erradicação do trabalho escravo?


A lei é importante para tornar os tipos penais mais claros, no que se refere ao tráfico de pessoas para fins de exploração do trabalho. Havia dois tipos no Código Penal: o tráfico para a exploração sexual e o aliciamento do trabalhador. Mas eles não eram suficientes para ter a caracterização penal do delito do tráfico de pessoas para fins de exploração do trabalho. Então, esperamos que, com a aprovação da lei, as ações de combate ao tráfico de pessoas para a exploração do trabalho possam se revigorar, inclusive resultando na não ocorrência de trabalho escravo. Afinal, há a possibilidade de se identificar a escravidão na origem, na saída para o transporte que destinaria à exploração do trabalho. Isto é, na ocorrência do tráfico de pessoas. A expectativa é que isso possa fortalecer algumas ações experimentais, como a parceria que o MPT realiza com a Polícia Rodoviária Federal. A definição mais clara do tipo penal quanto ao tráfico para fins de exploração do trabalho facilita a atuação das forças policiais.