Sistemas de proteção social não apoiam adequadamente grupos vulneráveis

Notícias | 8 de Maio de 2020
Homen e profissional de saúde com máscara de proteção individual. O Homen está a tossir
Os governos devem usar o momento criado pela pandemia da COVID-19 para progredir rapidamente em direção a sistemas de proteção social abrangentes, permanentes e financiados coletivamente.

Se a pandemia da COVID-19 enviou uma mensagem ao mundo, é que estamos tão seguros quanto os mais vulneráveis entre nós. Aqueles que não conseguem colocar-se em quarentena ou receber tratamento colocam em risco as suas próprias vidas e as vidas de outros, e se um país não pode conter o vírus, outros países arriscam-se a ter uma vaga de infeção ou mesmo reinfeção. E, no entanto, em todo o mundo, os sistemas de Proteção Social estão a falhar miseravelmente na missão de salvaguardar a vida e os meios de subsistência dos grupos vulneráveis.

Quase 40% da população mundial não tem seguro de saúde ou acesso a serviços nacionais de saúde. Cerca de 800 milhões de pessoas gastam pelo menos 10% do seu orçamento familiar em cuidados de saúde em cada ano, e 100 milhões de pessoas caem na pobreza por causa de despesas médicas. Isso significa que muitas pessoas simplesmente não têm meios de procurar tratamento quando estão doentes - inclusive quando têm doenças altamente contagiosas como a COVID-19.

Para agravar o problema, a esmagadora maioria dos trabalhadores não tem segurança económica para tirar uma licença médica ou lidar com uma emergência inesperada. Com menos de dois terços de todos os países a disporem de um regime de segurança social e/ou assistência social que forneça prestações sociais por doença, as pessoas doentes são frequentemente forçadas a escolher entre pôr em risco a saúde pessoal e pública e pagar as suas contas.

Não é de surpreender que as proteções em caso de desemprego também sejam severamente inadequadas, apesar do seu papel crítico no apoio ao rendimento das famílias e na estabilização da procura agregada. As empresas que dependem de fornecedores em regiões afetadas por surtos ou que enfrentam uma procura reduzida devido a confinamentos e outras medidas de contenção já estão sob imensa pressão. Centenas de milhares de empregos estão agora em perigo. E, no entanto, apenas uma em cada cinco pessoas desempregadas em todo o mundo pode contar com subsídios de desemprego.

De facto, na atualidade, 55% da população mundial - cerca de quatro biliões de pessoas - não beneficia de nenhuma forma de proteção social, com muitos países a depender de soluções baseadas no mercado (que apenas alguns podem pagar) para preencher as lacunas. Como a pandemia da COVID-19 demonstra claramente, isso não afeta apenas os mais pobres e vulneráveis; ameaça o bem-estar de sociedades inteiras e de toda a comunidade global.

Isto não é novidade para os líderes mundiais. Após a última catástrofe global - a crise financeira de 2008 - a comunidade internacional adotou por unanimidade a Recomendação sobre Pisos de Proteção Social (n.º 202), da Organização Internacional do Trabalho (OIT) comprometendo-se a estabelecer níveis mínimos de proteção que formariam a base de sistemas de segurança social abrangentes.

Em 2015, os líderes mundiais deram outro passo promissor, quando concordaram com a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável. Muitos dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável promovem a importância da proteção social. Por exemplo, a meta 3.8 visa “atingir a cobertura universal de saúde, incluindo a proteção do risco financeiro, o acesso a serviços de saúde essenciais de qualidade e o acesso a medicamentos e vacinas essenciais para todos de forma segura, eficaz, de qualidade e a preços acessíveis”. A meta 10.4 exige que os países se esforcem para “adotar políticas, especialmente ao nível fiscal, salarial e de proteção social, e alcançar progressivamente uma maior igualdade”. Finalmente a meta 1.3 visa "Implementar, a nível nacional, medidas e sistemas de proteção social adequados, para todos, incluindo pisos, e até 2030 atingir uma cobertura substancial dos mais pobres e vulneráveis".

Porém, como a crise da COVID-19 deixa claro, não houve progresso suficiente. Se a pandemia poderá ter uma consequência positiva, espera-se que seja a de levar os governos a estender o acesso a serviços de saúde, subsídios por doença e proteção ao desemprego. Afinal, as evidências mostram que essas despesas têm um efeito multiplicador positivo com maior impacto na economia do que outras medidas, como a redução de impostos para pessoas com rendimentos mais elevados, extensão de crédito aos compradores da primeira casa própria e algumas disposições relativas aos impostos sobre as empresas, e podem contribuir para a estabilidade política e social.

Claro que ainda há a questão de como pagar isto. A OIT estima que, para as economias em desenvolvimento, o défice médio de financiamento para a implementação de um piso adequado de proteção social é equivalente a 1,6% do PIB nacional. Para os países de baixo rendimento, essa diferença é muito maior: cerca de 5,6% do PIB. É improvável que tenham espaço fiscal suficiente para preencher essa lacuna por si mesmos.

No entanto, o mundo nunca foi tão rico como é hoje. Apesar da recessão induzida pela pandemia, poderemos mobilizar os recursos necessários. Para esse fim, os países devem implementar reformas nos impostos sobre as empresas, destinadas a garantir que as multinacionais contribuam com a sua quota-parte para os cofres públicos. Medidas como impostos progressivos sobre o rendimento e a riqueza bem como políticas para reduzir os fluxos financeiros ilícitos, também ajudariam.

Contudo essas medidas levariam tempo para surtir efeito e, como a pandemia já interrompe a atividade económica e reduz o rendimento e a procura, a velocidade é crucial. A curto prazo, os países desenvolvidos e os países em desenvolvimento precisam de mais flexibilidade para financiar défices e empréstimos internacionais em condições preferenciais para apoiar investimentos em sistemas de proteção social.

Muitos governos - particularmente em países com sistemas de saúde financiados por contribuições sociais ou impostos - já estão a aumentar as despesas, a fim de garantir o acesso aos serviços necessários durante a crise da COVID-19, incluindo a integração de medidas de prevenção, testes e tratamento em pacotes de benefícios. A Coreia do Sul, por exemplo, realiza milhares de testes COVID-19 todos os dias em centros de testes "drive-through" financiados pelo governo.

Além disso, vários governos aumentaram o apoio económico a famílias e empresas. A Região Administrativa Especial de Hong Kong, a Irlanda e o Reino Unido estenderam os subsídios por doença a trabalhadores em quarentena ou em auto-isolamento. A Alemanha e a Holanda estão a oferecer subsídios de desemprego parciais aos trabalhadores cujo horário de trabalho foi reduzido devido à queda na procura.

Da mesma forma, China, França, Portugal e Suíça ampliaram a elegibilidade dos subsídios de desemprego de forma a incluir trabalhadores de empresas que foram obrigadas a fechar temporariamente, enquanto Austrália, China e Portugal estenderam a assistência social para as populações vulneráveis. E muitos países - como China, França e Tailândia - prorrogaram os prazos para pagamentos de segurança social e impostos.

Porém, estas medidas são apenas um primeiro passo. Os governos devem usar o momento criado pela crise atual para progredir rapidamente em direção a sistemas de proteção social abrangentes, universais e com financiamento coletivo. Somente então as nossas sociedades e economias serão capazes de resistir à pandemia da COVID-19 - e a outras crises futuras.

Por Shahra Razavi, Diretora, Departamento de Proteção Social da OIT.