"Dia Internacional para a Abolição da Escravatura faz 60 anos", Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
Data criada pela ONU ganha novo significado diante do número recorde de 27 milhões de escravos GENEBRA - No dia 2 de dezembro é comemorado o Dia Internacional para a Abolição da Escravatura, data criada pela Organização das Nações Unidas (ONU) há 60 anos.
Cristina Romanelli
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
Esse pode parecer um assunto antigo, tema de aulas de História, mas o problema persiste. Surpreendentemente, nunca houve tantos escravos como hoje. A ONU estima que existam 27 milhões de vítimas da escravidão, ou seja, mais do que o dobro de africanos forçados a trabalhar durante os cerca de 400 anos de tráfico nas Américas.
Segundo relatórios do Programa de Ação Especial para Combater o Trabalho Forçado, mantido pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), o tráfico de seres humanos gera 32 bilhões de dólares por ano no mundo. De acordo com a OIT, 44% das vítimas são traficadas com o objetivo de exploração sexual, 32% para exploração no trabalho e 25% para uma combinação de ambos. Além disso, estima-se que metade das vítimas são menores de 18 anos.
De acordo com a definição da ONU, a escravidão é uma forma de trabalho forçado e, por isso, um dos principais focos do programa especial da OIT. Segundo Aurélie Hauchère, porta-voz do programa, a escravidão é ilegal em quase todos os países, no entanto, algumas formas chamadas de “vestígios de escravidão” ainda persistem em alguns locais. “Isso ainda existe naquelas partes da África onde a escravidão tem sido documentada há muito tempo, e onde a legalidade da escravidão tradicional pode envolver contínua discriminação e práticas de trabalho coercivo”, diz ela.
Para Aurélie, o dia 2 de dezembro deve ser um dia de ação e comprometimento à completa erradicação da escravidão. “O dia também encoraja as pessoas a embutir significado nas palavras da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que diz que ‘ninguém será mantido em escravidão ou servidão’ por meio de suas ações”, afirma ela.
O porta-voz da ONG Anti-Slavery International, Paul Donohoe, concorda com Aurélie e acrescenta que o dia é uma oportunidade de ação principalmente para os governos. A Anti-Slavery International foi a primeira organização de direitos humanos criada no mundo, em 1839, e organiza anualmente a entrega de um prêmio para incentivar a luta contra a escravidão.
De acordo com Donohoe, a escolha do ganhador é feita por um painel de membros da ONG, especialistas em escravidão, líderes de direitos humanos, e pelo chefe do Congresso da União dos Trabalhadores na Europa (TUC). Entre os critérios de seleção, estão os riscos ligados à atividade desenvolvida, a intensidade do problema de exploração e o impacto do prêmio sobre o trabalho do ganhador.
Ricardo Rezende ganhou o prêmio da ONG britânica em 1992. Para ele, o evento a ajudou a chamar atenção para o problema no Brasil e para o trabalho que desenvolvia na época. Hoje professor e membro do Grupo de Pesquisa Trabalho Escravo Contemporâneo, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), ele acredita que o Brasil seja referência internacional nos estudos sobre o tema. “O Brasil está mais avançado que outros países do primeiro e terceiro mundo”, afirma ele.
Segundo o pesquisador brasileiro, o escravo contemporâneo geralmente está desempregado e tem baixa escolaridade. No entanto, pessoas com curso superior que se mudam para países de primeiro mundo também podem ser submetidas ao trabalho escravo. Rezende explica que, geralmente, a vítima é estrangeira ou proveniente de algum lugar distante do local de trabalho.
– O pretexto mais comum para a escravidão, principalmente no Ocidente, é a dívida. Se a pessoa sair do lugar onde ela mora, você pode criar a dívida de transporte, de alimentação e de moradia. A eficiência da dominação depende de você ser capaz de convencer o dominado que o que você faz é legítimo – explica o professor.
A escravidão nos continentes
Segundo a porta-voz do programa especial da OIT, houve aumento na consciência do risco das práticas de escravidão na América Latina. “Um país como o Brasil, com longa experiência no combate do trabalho forçado, tem mostrado o que pode ser feito por meio de métodos inovadores de pesquisa, monitoramento e inspeção”, afirma Aurélie. Para ela, o Peru foi outro país latino que avançou em relação à política de coordenação de mecanismos e inspeção do trabalho.
De acordo com Donohoe, a escravidão por dívida é o tipo mais comum no mundo e prevalece no sul da Ásia, tendo ligação direta com a discriminação por castas.
Segundo Aurélie, esta é uma questão que recebe atenção especial da OIT, pois a legislação existente não está sendo cumprida. Além disso, ela afirma que aumentou a incidência de tráfico sexual e exploração de trabalhadores no continente asiático e há persistência de trabalho forçado demandado pelo Estado e por instituições oficiais em países como Mianmar.
Na Europa, o foco de ação da OIT tem sido no trabalho forçado como resultado de processos irregulares de migração. De acordo com Aurélie, foi iniciado em 2004 um projeto na Albânia, na Moldávia e na Ucrânia para contribuir com a adoção de leis mais rígidas sobre migração e o fortalecimento de instituições nacionais de migração e de cooperação entre países de origem e destino. Além disso, um estudo recente em Portugal forneceu um modelo útil para pesquisas futuras, dirigindo-se, separadamente, à exploração do trabalho imigrante em Portugal e à exploração e ao tráfico de emigrantes portugueses em outros países europeus.
Já no Oriente Médio, segundo a porta-voz do programa especial da OIT, tem havido um crescimento regular de informações sobre temas relacionados ao tráfico humano e sobre alguns tipos de trabalho forçado. Vários países adotaram novas leis contra o tráfico, muitas vezes auxiliados por mecanismos de coordenação interministeriais. Para Aurélie, a questão de garantias adequadas para trabalhadores é de preocupação particular em países que precisam da migração para compor a mão de obra.
O caso africano é, aparentemente, o mais grave. Segundo Rezende, a escravidão no continente está relacionada a questões culturais, de etnia e religião. A Mauritânia, por exemplo, tem estimados 18% de escravos na população. Ou seja, cerca de 600 mil pessoas. O país criou novas leis em 2007, mas Donohoe afirma temer que elas não sejam cumpridas pela atual administração. Em 2008, o primeiro presidente eleito democraticamente foi retirado do poder por um golpe liderado pelo general Mohammed Ould Abdelaziz, que ganhou as eleições de julho deste ano. Até agora ninguém foi processado pela lei.
- Além disso, a nova lei não oferece às organizações de direitos humanos ou às vítimas individuais o direito à uma ação civil ou criminal. E práticas como casamento forçado e escravidão por dívida não estão inclusas – denuncia Donohoe.
O ganhador do prêmio Anti-Slavery International em 2009 foi o mauritanês, filho de escravos, Boubacar Messaoud. Ele foi o primeiro de sua família a receber educação formal. Com o auxílio de bolsas de estudo, freqüentou curso superior em Mali e na Rússia. Messaoud é presidente e um dos fundadores da ONG SOS Esclaves, que só foi oficialmente aceita pelo governo em 2005.
Balanço geral
Para Aurélie, houve progresso e conquistas positivas em muitas frentes, como esforços conjuntos por parte de governos, empresas e trabalhadores, para identificar o trabalho forçado e libertar as vítimas. Além disso, muitos países adotaram novas leis, particularmente contra o tráfico de pessoas, e houve medidas para melhorar as práticas de recrutamento entre países destinatários e remetentes de imigrantes. No entanto, ela acredita que a aplicação das leis contra o trabalho forçado e o tráfico ainda é muito limitada. A porta-voz do programa da OIT acredita que há três desafios-chave a serem enfrentados.
– Primeiramente, governos por toda parte devem parar de negar e começar a apoiar pesquisas para documentar a incidência do trabalho escravo. Em segundo lugar, ministérios do trabalho deveriam assumir um papel mais ativo na liderança nacional contra o problema. Por fim, a prevenção deve ser entendida em seu senso mais abrangente, pois aspectos sistêmicos do mercado de trabalho e do controle da imigração estão na raiz de grande parte do trabalho forçado – diz ela.
Para o pesquisador Ricardo Rezende, a escravidão vai continuar a existir enquanto houver desigualdade social, desemprego e chances diferenciadas e excludentes para acesso ao trabalho regular. Ele acredita que o trabalho de ONGs como a Anti-Slavery International é essencial, principalmente como forma de denúncia, mas não é suficiente para acabar com o crime. Rezende acha que apenas uma mudança estrutural, partindo de ações do Estado, poderia efetivamente erradicar a escravidão.
Cristina Romanelli
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro